terça-feira, 7 de outubro de 2014

Primavera


Dia dezenove de outubro de 2012, dia do meu transplante. 
Meu e do meu irmão. As outras datas eram outras quaisquer naquele momento. Mas era primavera e era dezenove de outubro e em poucas horas eu iria transplantar.
Levantei às cinco da manhã. Na verdade não dormi muito bem, fiquei bastante tempo acordada, pensando, rezando, chorando e agradecendo por estar ali e ter uma nova chance. Mais uma chance. O meu irmão estava na acama ao lado. E dormia. O sono dos Deuses, como diz a minha mãe. 
Fiquei olhando ele dormir e fiz uma oração para que tudo desse certo  e que o protegesse. Protegesse meu amado irmão. Não queria que nada de ruim acontecesse com ele. Ele era especial demais, uma pessoa pura, uma alma serena e tranqüila. E com uma família esperando ele voltar para casa. 
São e salvo. Mas sem um rim.
As cinco da manhã entraram no quarto e avisaram que em meia hora levariam-no primeiro para o centro cirúrgico. Primeiro é sempre o doador,  é preparado, anestesiado e então retiram o rim.
Ele tinha acabado de sair do quarto na maca para a preparação.
E a minha mãe entra voando no quarto.
- Onde está o seu irmão?
- Já levaram ele mãe, acabaram de levar.
E ela saiu correndo pelo corredor para encontrá-lo. Queria dar um beijo, dizer algumas palavras, segurar a mão dele. 
Mas ele já estava no centro cirúrgico.
O desespero dela foi tão grande que chamou uma enfermeira e implorou para que pudesse lhe dar um oi. A insistência foi tão grande, e disso minha mãe sabe fazer como ninguém, que eles deixaram apenas ela lhe dar um beijo e dizer "boa sorte meu filho, a mãe te ama, vai dar tudo certo".
E ela conseguiu.  
Um lágrima escorreu no rosto dele. E ele não conseguiu emitir uma palavra.
Minha voltou para o meu quarto chorando.
- Já levaram ele pra cirurgia. Ele estava tão sereno, filha. Ele quer salvar a tua vida. Como eu. E vai dar certo.
- Então comecei a ficar ansiosa. Comecei a andar de um lado para outro no quarto sem poder sair pois já estava em isolamento, fazendo uma medicação muito forte para abaixar a imunidade. Em poucos instantes eles me chamariam, assim que tirassem o rim do meu irmão.
Não era uma espera qualquer. Era uma espera que mudaria minha vida. E devolveria a mãe, mulher, esposa e filha alegre que sempre fui. 
Mas eu só pensava nele. Naquele momento eu esqueci de mim, a minha cabeça só pensava no meu irmão. Tão jovem, tão lindo, dois filhos e uma mulher em casa esperando por ele. Esperando ele voltar com saúde e continuar a vida. Tão saudável, surfista, Palmeirense fanático. Amado, educado, honesto e ainda por cima disposto a salvar a minha vida.
Eu só pensava nele. Aquela pessoa maravilhosa. 
Como poucas que conheci.
Meu irmão...
Bateram na porta:
- Vamos Carolina?
- Eu sabia que havia chegado o momento. Era hora de eu ir. Ir encontrar o que eu mais queria na minha vida, o rim que me tiraria da hemodiálise e me tornaria uma outra Carolina.
Uma Carolina muito mais madura e feliz, essa era a única certeza que eu tinha.
A medicação de baixar a imunidade acabou, e os preparativos começaram. Meu irmão já estava no final da cirurgia,  e eu só queria saber dele. Eu estava aguardando o rim. Mas que o rim saísse dele de uma maneira perfeita e que ele ficasse bem. Era essa a minha oração.
Me levaram para dentro do centro cirúrgico, amarraram minhas mãos, fizeram uma limpeza profunda na barriga, lugar onde vai o rim transplantado. Desta vez do meu lado esquerdo, do lado direito ainda estava o da minha mãe. Preferem não mexer, nem tirar. E com certeza sabem o porque disso. E eu não queria mesmo que tirassem, era um pedacinho dela dentro de mim. Eu em breve estaria então com quatro rins, os meus dois falecidos, o da minha mãe e o  novinho em folha do meu irmão.
Mas eu queria saber dele:
- A cirurgia dele já terminou? Já tiraram o rim? Como ele está? Onde está o rim?
- Calma Carol, ele está super bem, em breve eles vão tirar o rim, colocam num bolsa de gelo, fica lá por pouco tempo e já trazem pra você. Fique tranqüila, ficar nervosa não vai adiantar. Vai dar certo, aliás já deu!
Eu me lembro desse enfermeiro, como o mundo é um mini mundo, o filho dele fez judô com o meu filho e meio dopada ainda consegui dizer isso pra ele. Ele sorriu para mim e segurou a minha mão e eu desabei. Desabei a chorar compulsivamente. Como há tempo não chorava. Mas a mão dele me confortou. Uma mão macia disposta a me acalmar.
Então ele me disse:
-Agora você vai dormir e vai acordar de rim novo, tudo bem? Está feliz?
- Claro. É o que mais quero. E o meu irmão?
E aí eu apaguei. Dormi o sono mais profundo e esperançoso da minha vida. Devo ter sonhado com a Carolina de rim novo caminhando nas nuvens com uns corações em volta. E cachorros também, claro. Sonhadora como sempre fui. Uma pisciana eternamente sonhadora.
Horas depois, eu acordei. A cirurgia deve ter demorado umas cinco horas.
Eu não conseguia falar direito, mas chamei o anestesista:
- Onde está o meu irmão? não sei como ele entendeu.
- Ele está ali, vou levantar devagar sua cabeça e você vai ver como ele está bem.
E eu o vi. Deitado, dormindo, sereno, cheio de anjos em volta dele. Eu o vi. E o vi como queria que ele estivesse.
Eu queria levantar, sair daquela maca  e ir ao encontro dele, abraçá-lo, dizer o quanto eu o amo, que não existem palavras nesse mundo para descrever aquele momento. Aquele gesto. De se doar. De amar. E não pedir nada em troca.
Mas não era possível. E a dor começou a vir devagarzinho. Chamei o anestesista e consegui esboçar um ruído, mas ele entendeu que eu estava com muita dor. Colocou uma bomba de infusão de morfina.
O meu irmão foi antes para o quarto e eu ainda fiquei mais um tempo na recuperação.
Quando eu voltei para o quarto, mesmo com a morfina, com uma infinidade de canos, máscara, cortes, dores e curativos eu avistei o meu irmão no quarto. Ele abanou pra mim e eu comecei a chorar, mas era um choro de alegria. Uma alegria especialmente diferente. Nós dois estávamos vivos.
E o quarto de repente ficou cheio de luz, porque o meu marido e minha mãe também estavam lá. Nos esperando. Felizes, emocionados. 
Só faltava a corneta e as serpentinas. Esses dois quando se juntam transformam um velório num circo.
Era primavera. E tudo tinha dado certo. E a sonda já estava cheia de urina. Há nove meses eu não sabia o que era isso.
E o melhor, eu sabia que não estava sozinha. Uma nova semente estava brotando dentro de mim.
Agora além da minha família, eu tinha um novo rim para cuidar, uma nova vida a seguir.
E um destino a me guiar.