A minha ficha ainda não tinha caído. Eu ainda acreditava
viver o sonho de um transplante bem realizado. Feliz. Sonho de viver normalmente
como uma pessoa qualquer. Viajar, sair para beber, ter disposição e ânimo para
enfrentar mais um dia.
Mas a partir daí, as coisas tomaram um rumo bem diferente.
Eu ainda estava vivendo o luto da perda do rim. Eu e minha mãe. Todos ao nosso
redor sofriam. Mas a doação foi entre nós duas. Nós duas fomos para o centro
cirúrgico, nós duas íamos nas consultas. Éramos como uma só.
Geralmente as pessoas têm um tempo de elaborar uma perda. De
viver o luto. De conseguir elaborar uma tristeza profunda. De aceitar. Ou não.
Mas eu não tive tempo. A diálise estava perto. Na outra
semana. Com horário marcado.
Terças, quintas e sábados. Das seis às dez da manhã.
E o dia chegou. Dia vinte e dois de março de 2012. O dia em
que eu comecei a diálise.
Levantei às cinco da manhã, comi alguma coisa, me arrumei.
Não sabia nem se poderia ter comido, o que vestir e o que me esperava. Coloquei
uma blusa da Minnie e uma calça preta bailarina. E nos pés uma sapatilha cor de rosa.
Eu sempre gostei de rosa e gosto até hoje. Eu carrego muitas coisas da minha
infância, e a minha paixão por cachorros, brigadeiro e cor de rosa são algumas
delas.
Peguei meu carro e parti rumo ao meu destino. Meu destino de
dois em dois dias. Sem poder faltar. Nem ter preguiça de ir. Nem desculpas. Não
se falta hemodiálise por nada nesse mundo porque simplesmente não dá, o inchaço
toma conta e o líquido começa a se espalhar e pode ir para o pulmão.
É um caminho algumas vezes sem volta. Ou não.
A rua estava bem vazia. Poucas pessoas, talvez saindo de uma
balada. Um homem dormindo no chão. E dois carros de polícia andando bem
devagar. Fiquei mais segura por um momento. Eu ainda acredito e confio na
polícia. Não estava sozinha, pensei.
Chegando perto da
fundação, passei por uma fábrica e ali me senti bem mais segura. Várias pessoas
indo trabalhar. Algumas voltando para casa. E muitas bicicletas. Homens indo
para o trabalho pesado de uma fábrica às cinco da manhã. E de bicicleta. E eu
reclamando. Me senti um pouco egoísta naquele momento. Mas eu não estava indo
trabalhar. Eu com certeza preferia estar no lugar daqueles homens. Preferia
estar indo ás cinco da manhã de bicicleta na chuva para o trabalho pesado na
fábrica. Com certeza preferia.
Estava com medo e muito ansiosa. Ansiedade é meu terceiro
sobrenome depois do de casada. Eu sabia aonde era o meu destino porque a
fundação já era minha segunda casa. Cheguei, estacionei o meu carro. Ninguém na
recepção. Claro, as cinco da manhã, geralmente as pessoas dormem. Pelo menos a
maioria.
Então subi as escadas. Um andar. E cheguei em frente a placa
"HEMODIÁLISE".
Agora não tinha mais volta.
Entrei meio tímida e disse para uma enfermeira:
- Bom dia.
Nossa, eu ainda estava bem humorada, porque levantar as
cinco da manhã quando você vai viajar é uma coisa, mas levantar as cinco da
manhã para ir fazer hemodiálise é outra bem diferente. Uma coisa de gente muito
bem resolvida. Ou doida.
- Bom dia - disse ela.
- Qual é o seu nome?
-Carolina. Mas o pessoal aqui me chama de Carol.
-Carol, você vai tirar quanto hoje?
- Como assim quanto vou tirar?
- Quantos quilos você vai tirar? - voltou a perguntar.
Será que eu estava no lugar certo? Era uma clínica de
hemodiálise ou de emagrecimento? Eu queria perder uns dois quilos, mas eu não
estava entendendo o que ela queria.
- Eu não sei- respondi.
- É minha primeira diálise hoje.
- Você urina ainda?
-Um pouco - respondi.
- Vou ver então com a enfermeira chefe.
Voltou em instantes e falou:
- Vamos tirar um quilo hoje. Vou programar a máquina para
retirar um quilo (na verdade um litro). Quando você sair da diálise se pesa.
Quando voltar na próxima sessão você se pesa novamente. Terá sempre de manter o
peso.
Era muita informação para poucos minutos. E a diálise ainda
nem havia começado.
Seis e quinze da manhã. E eu esperando.
- Pode encostar na poltrona. Vou puncionar sua fístula.
Aquilo não soou bem. Eu sabia que era o primeiro dia de
muitos. Ou de muitas. Muitas diálises. E muitas picadas.
Examinou a minha fístula e buscou o material.
Limpou bem com álcool
e tirou a agulha do plástico. A agulha de hemodiálise se parece mais com uma
lança do que propriamente com uma agulha.
- Respire fundo. Vai doer um pouco. Não puxe o braço.
Não puxei o braço, respirei fundo e doeu muito. Quando eu
quero eu sou bem obediente.
Na verdade não era uma dor física. Era uma dor emocional. Do
fundo do coração. Uma dor que não tem nomenclatura, nem descrição.
A enfermeira conectou vários fios e tudo começou a
funcionar. A diálise havia começado. O meu sangue estava sendo limpo. Mas o meu
coração estava sendo despedaçado. E o da minha mãe, mesmo dormindo naquele
horário, também estava. Eu sei que estava.
- Hoje você só faz duas horas- disse ela.
- Porque?
- A primeira diálise é sempre duas horas, vamos ver como
você reage. A próxima será de três e aí sim na terceira você inicia as quatro
horas padrão.
As seis e meia eu iniciei a hemodiálise. Foram duas horas.
Duas horas que passaram rápido. E eu passei muito bem. Não saí tonta, nem
enjoada. Saí como eu entrei. Fui me pesar como ela havia pedido. Um quilo a
menos na balança. Bom se a aquela máquina tirasse gordura. Bom se fosse um
quilo. Na verdade era um litro. Um litro de líquidos misturado com toxinas.
Eu só queria ir embora. Voltar para casa.
E voltei.
Três semanas depois, eu levantei as cinco da manhã para mais
uma sessão. Como de rotina a primeira coisa que sempre fazia ao levantar era
urinar. Mas não saiu nada. Nada. Nem uma gota. Achei estranho.
Comentei com um médico na diálise horas depois e ele disse:
- Isso é comum. Muitas pessoas em hemodiálise param de
urinar. Agora você tem que cuidar muito com líquidos. Como você não urina mais
não pode mais tomar água como antes. Nem tomar sopa. Nem nada que tenha muito
líquido. É muito perigoso. Você vai inchar e o líquido pode ir para o pulmão. Os
líquidos.
Lembre-se disso. Não ingira líquidos.
Bem vinda ao clube Carolina.
E eu estava agora sem poder tomar água. Nem sopa, nem
gelatina, nem suco. Eu não esperava escutar isso. Ninguém nesse mundo deveria
escutar isso. Dói mais que cortar a mão com papel.
- Dr., não dá para fazer o transplante logo não?
Na verdade eu queria dizer que eles podiam pegar outro rim, de qualquer
pessoa, eu estava preparada para outro transplante. Podem marcar. Eu tenho
tempo na agenda. Já sou pós graduada em sondas e agulhas. Eu conheço um bisturi
como ninguém. Eu mesma posso fazer o
transplante. Já vi vários vídeos. Já sei como é. Vai dar certo. Eu garanto. Eu
só quero ter minha vida de volta, voltar a urinar e tomar água. Eu tenho sede.
Muita sede. Com o transplante eu volto a ser eu e não incomodo mais ninguém. A
minha mãe e o meu pai não iria mais chorar cada vez que eu chegasse da diálise.
Eu voltaria a ter disposição. Voltar a cuidar da minha casa. Do meu marido. Do
meu filho. Da minha cachorra. Eles precisam de mim. Todos os dias. Eu posso
qualquer dia. Podem marcar.
Eu estou pronta.
Mas eu emiti apenas um...
-Dr., por favor?
- Carol, não é simples fazer um transplante. No momento não
vamos pensar nisso. No seu caso é um retransplante, mais complicado ainda. E
você está muito anêmica. Está perdendo peso. Temos que tratar várias coisas
primeiro. E seu painel deve estar alto. Tem que ser alguém com uma
compatibilidade muito grande. Maior que sua mãe.
Mas eu iria encontrar alguém.
Essa era a única certeza que eu tinha naquele momento.
Essa era a única certeza que eu tinha naquele momento.
E ali começou a minha busca.
A minha incansável busca por um novo e saudável rim.