domingo, 12 de fevereiro de 2017

A Perda


Na vida a gente perde muitas coisas. Pai, mãe, cachorro. Perde brinco no mar. Perde as vezes o juízo. E a razão.
Mas a perda que estava por vir não era nada parecida com esse tipo de perda. Era diferente. Diferente de todas que eu já havia sentido. Era uma perda irreparável. Dolorosa. Sofrida.
Uma perda inconsolável.
Voltei ao médico com os exames em mãos e coisa que nunca faço, mordi minha mão. Com muita força. Quase arranquei meu dedo. Eu já tinha visto o exame. E eu sabia o que iria escutar. E era o que eu não queria escutar.
Mas eu estava ali sentada na frente do médico. Eu e ele. E os meus exames. Meus péssimos exames.
Creatinina nas alturas do Monte Everest.
Não deu tempo de nada, de correr, de me jogar na frente de um caminhão, de rezar, de gritar, apenas de morder a mão. Não deu tempo de nada. E antes que uma lágrima caísse, ele olhou para mim e disse:
- Você começa hemodiálise semana que vem. É  uma derrota para eu ter que te falar isso, mas você perdeu esse rim transplantado, Carol. Não podemos mais esperar.
Eu perdi o rim da minha mãe. Aquele rim que ela doou com a maior amor desse mundo, sem nunca me cobrar nada em troca. Ela tirou um órgão de dentro de si e deu de presente para mim. Deu de presente para a sua filha, de coração,  pensando curá-la, protegê-la. Protegê-la de todos os maus. Era um rim tão perfeito, feito para mim. Um rim rosado, como disse meu cirurgião. Forte e cheio de vida. E esse rim agora estava dentro de mim sem vida. Sem funcionar.
E não havia o que fazer.
Como eu iria dar essa notícia para a minha mãe, para o meu marido, para o meu pai? Como seria minha vida na hemodiálise? Como seria a minha vida? 
A minha cabeça começou a fundir.
E eu me desesperei.
Comecei a chorar alto no consultório, compulsivamente, descontroladamente. Eu queria gritar, fugir daquele lugar.
E eu não queria encontrar a minha mãe.
Chamaram a psicóloga e  uma enfermeira para me acalmar. Mas nada me acalmava. Nada me desviava da frase "você perdeu o rim da sua mãe". Nada. Eu não pensava em outra coisa. Eu não emitia uma palavra. Só choro. O choro mais dolorido que senti em toda a minha vida. Eu sangrava por dentro. Eu queria ficar anos sem ver a minha mãe. Eu não queria olhar para ela. Ela doou o rim para me libertar, me fazer viver feliz. Me senti como se tivesse perdido um filho dentro da barriga.
O que eu iria dizer para a minha mãe? E as gargalhadas dela? Aquela alegria contagiante, aquele jeito doce de ser.
Eu não queria que esse dia chegasse.
Mas chegou. E foi no mesmo dia.
Ela já sabia. Porque eu não saberia contar. Eu não teria essa sabedoria. Eu não saberia que palavras usar. Eu não conseguiria olhar dentro dos olhos dela. De maneira alguma.
Ela entrou na minha casa e disse:
- Filha...
E nos abraçamos. E choramos juntas.
O choro mais dolorido das nossas vidas. 
Não havia o que ser dito naquele momento.
Era uma perda.

E uma perda para sempre.