domingo, 16 de novembro de 2014

Lembranças

Estava no quinto dia de transplante. Meus exames estavam melhorando a cada dia. As coisas realmente estavam indo muito bem. Até mais do que os próprios médicos imaginavam.
Mas claro, um transplante não é algo simples. Você faz a cirurgia, se recupera um pouco e vai para casa. Não. É um processo. E um processo muitas vezes longo e lento. Conheço pacientes que ficaram sessenta dias internados. Eu fiquei dezoito.
Mas nesse quinto dia, os remédios já estavam fazendo efeito e eu comecei a inchar. Inchar igual um balão mesmo. Inchei oito litros em em cinco dias. Nada me servia. Grandes coisa. Quem iria me ver com oito quilos a mais. Mas mulher é um ser de outro mundo. E uma coisa que está grudada em mim  e vai comigo até para o hospital é a minha vaidade. Uma mala de roupas e outra de maquiagem.
E não queria que ninguém me visse daquele jeito. A camisola GG do hospital estava um pouco apertada. A sonda incomodava, eu tinha falta de ar por conta do inchaço. Normal, porque nos é dado muito soro. O rim transplantado funcionando bem, gosta de nadar. Nunca me esqueço dessa frase dita por um médico residente que passou para me ver. O rim gosta de água. E água, hoje pra mim, é uma coisa inseparável. Amo tomar água. Amo praia, piscina. E demorar no banho. Meu pecado mortal, principalmente nos dias de hoje. E não via a hora de voltar a fazer essas coisas que amo.
No dia seguinte me pesei. Nove quilos a mais. Então veio o desânimo.
Desânimo misturado com dor, ansiedade, esperança, fé e saudades. Saudades dos que estavam do lado de fora e não poderiam ir me visitar.
Mas eu não estava bem. Tudo me incomodava. Sempre fui uma paciente extremamente paciente. Não reclamava nem das agulhadas da hemodiálise, vou reclamar do que agora?
Mas a tristeza é uma coisa que vem e não avisa. Vem sem hora e data marcada.
Eu me sentia o monstro do lago Ness e minha médica entra no meu quarto.
Eu não estava chorando. Estava soluçando.
- Carol, o que aconteceu, vim trazer seus exames, estão ótimos!
- Sim Dra, mas estou triste. Me sinto feia, gorda e incapaz. Quero ficar boa, voltar a ser o que eu era antes, voltar para o meu lar, cuidar da minha casa, do meu marido. Meu filho está me esperando. A minha cachorra, que falta ela faz. Quero minha vida de volta. Me ajude.
- Por favor Dra, me ajude!
Para eu pedir ajuda a alguém é porque realmente havia chegado ao meu limite.
A conversa foi longa. Chorei como há tempos não chorava.
E depois de muito tempo ela me explicou todo o processo que ainda estava por vir. Alta hospitalar, nem perto. Havia um caminho a seguir.
- Mas você vai voltar ao normal. Esse inchaço, esse incômodo, essa angústia terrível, acredite, Carol, vai passar.
- Confie em mim, faça seu tratamento, tome seus remédios e logo você estará em casa planejando uma viagem maravilhosa com seu marido. O que acha?
- Não deixe de sonhar, Carol. Amanhã estou de volta.
Tirou a roupa de isolamento, as luvas e a máscara, e antes de fechar a porta, ela sorriu e me disse:
- Você pode não achar e não acreditar, mas continua, para mim, a mesma boneca de sempre.
Quanta elegância. Delicadeza. Quando entendimento de vida. De sofrimento. De dor e de nos dar esperança.
No dia seguinte acordei com dez quilos a mais. Estava mais inchada. Mas não desanimei. Fiquei pensando naquela viagem que ela me disse. Será?  Eu aqui, cheia de canos e tubos. Fazer uma viagem.? Máscara, sonda, um corte significativamente grande. Ai senhor, eu pensava, me alivia um pouco...
Passaram-se treze dias, já estava devagarinho voltando a ficar mais parecida comigo e o melhor meus exames. Meus exames eram os melhores possíveis.
E eu estava de alta.
No dia oito de novembro de 2012 eu voltei para casa.
Me lembro dele como se fosse ontem. Estava um dia lindo. O sol...quantos dias fiquei sem vê-lo.
Cheguei em casa meio desarrumada e olhei tudo...minha casa, meu lar. Eu estava de volta.
Fiquei escondida no lavabo da sala esperando meu filho voltar da escola. Ele não sabia que eu havia voltado. Só minha mãe e meu marido.
Ele entrou e a cena, sinceramente não consigo descrever. Me faltam palavras. Estar longe de quem você ama é talvez uma da piores coisas que já inventaram.
Passou um tempo e meu marido veio conversar comigo. Queria me dar um presente. Nossa, eu já havia ganhado meu presente. Os exames, a minha saúde...
- Vamos viajar? Só nós dois?
Como assim, pensei. Viajar? Mas para onde, ainda estou em recuperação. Inchada, pra variar. Minha imunidade está lá no pé.
- Não é pra já. Já conversei com a Dra. É  para daqui seis meses, quando você estiver bem, recuperada. Mas já comprei as passagens. Vai dar tudo certo.
E em maio de 2013 eu estava aterrizando em Nova York. Não me perguntem porque eu amo aquele país. Têm coisas que nos fazem bem. A gente ama e pronto. E ele sabia disso.
Escolheu o destino certo.
Um ano presa na hemodiálise e agora eu me sentia como um passarinho solto da gaiola. Podia fazer o que queria. Andar pelas ruas, comer, sorrir. Minhas roupas já estavam me servindo. Estava acima do peso, mas o que isso importava?
Nada. Absolutamente nada. Eu estava em Nova York, um lugar que sinceramente, não sei descrever. Gosto de observar as pessoas, de andar nas ruas. De andar de metrô. De bicicleta no Central Park. De sentir aquele friozinho gostoso e ter os braços do homem que amo para me aquecer. Da mesma maneira que me aquecia no hospital.
Eu estava livre.
E feliz.
E das quinhentas fotos que tirei, selecionei uma. Poderia ter escolhido várias entre paisagens, restaurantes, ruas. Pratos elaborados, como as pessoas gostam de tirar.
Mas escolhi uma que adoro e que me traz lembranças inesquecíveis. O dia em que fomos de metrô e atravessamos a cidade para assistir Chicago Bulls e Brooklin Nets.
Não foi uma noite de glamour como dizem, mas uma noite em que eu realmente percebi que estava voltando a ser eu.
Torcendo, gritando, xingando e comendo X tudo. Entre milhares de americanos.
Ninguém sabia o que eu havia passado, e nem precisavam saber.
Não havia motivos para que desconfiassem. A minha felicidade não deixaria isso acontecer.
Voltamos de metrô de madrugada. Rindo até chegar ao hotel. Me lembro de dar gargalhadas atravessando a rua as duas horas da manhã.
E eu observando todos ao meu redor. Nova York não dorme. A madrugada não é muito diferente do dia. Parece que a gente nem quer dormir para curtir o ela tem a nos oferecer. E cada um que passava por mim eu sabia que tinha uma história de vida. Suas limitações, suas dores, angústias e felicidades.
Existe vida por trás de uma doença.
Existe vida dentro de cada um de nós.
Basta a gente ter um pouco de paciência e saber esperar.
Tentar olhar um pouco mais para as coisa simples da vida. E entender que o que importa realmente não é o que você tem na vida, mas quem você tem. Mesmo que esse "quem" caiba em uma mão.
Obrigada Dra, a próxima já está agendada.
E eu nunca deixarei de sonhar.
De acreditar.
E principalmente, de agradecer.


Bjs no coração!







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