domingo, 17 de maio de 2015

A espera


Têm coisas na vida que me deixam maluca. E uma delas é esperar.
Esperar receber o telefonema de alguém.
Esperar uma notícia que não chega, uma voz que não sai, um telefone que não toca.
Esperar por natureza já é uma coisa que o ser humano não tolera muito. Eu me considero um pouco diferente da maioria, mas esperar é uma coisa angustiante. E me incluo nessa lista.
Esperar na fila do banco, na padaria. Esperar o avião decolar. A nota sair. A música começar.
Esperar eu descobri não fazer bem para o meu coração. Esperar dói, irrita.
Quatro meses de hemodiálise, a minha anemia estava  dando trégua, o meu peso estava gradativamente subindo e o meu médico fala pela primeira vez na palavra transplante.
Eu fiquei feliz demais. Foram quatro meses em silêncio. Meu e dele. Ele sabia que eu queria fazer um novo transplante e esperou a hora certa de falar. Quando ele estivesse certo daquilo que estava falando. Quando o transplante voltasse a ser uma possível realidade para mim. E para a equipe. Porque para tudo na vida existe um momento certo. E esse momento havia chegado.
- Carol, você quer fazer um novo transplante?
- É o que eu mais quero na vida.
E consegui esboçar um sorriso.
-Vamos procurar um doador. Como seu painel é alto tem que ser doador vivo. Vamos procurar na sua família novamente?
Eu estava feliz demais.
- Claro Dr., vamos a caça desse rim. E eu vou encontrá-lo. Prometo.
Me tornei a detetive mais empenhada das melhores séries americanas.
- Seu pai não pode doar porque é cardíaco. Vamos começar pelos seus irmãos?
- Sim, claro. Eu estava motivada novamente. Motivada a encontrar o meu tão sonhado rim.
Motivada a ter a minha vida de volta.
- Vamos fazer o exame de compatibilidade. Marque um horário para os dois virem junto com você.
E eles fizeram. Junto comigo. No dia marcado. Meus irmãos estavam ali. Dispostos a me ajudar. Estavam alí esperando a enfermeira chamar para tirar o sangue.
A minha esperança era um coisa absurda. Eu sabia que um retransplante era mais complicado, mas eu estava acreditando. Iria dar certo. Eu sabia que sim.
O exame de compatibilidade sanguínea é um pouco complexo. Algumas pessoas acham que é só ter o mesmo tipo de sangue, mas não é. É uma riqueza de detalhes. Um mar de possibilidades.
Após cada um coletar os exames, nos despedimos e cada um seguiu seu caminho. No momento da coleta eu sempre pergunto para a enfermeira se ela deixou algum sangue dentro de mim, porque para esses exame são necessários vários tubos. E cheios. As vezes eu não tenho o que falar e falo besteira. Talvez para descontrair. Eu não ligo a mínima para tirar sangue. Até porque depois que te perfuram a fístula com a agulha de hemodiálise calibre trinta e oito, você acha todas as outras agulhas do mundo a coisa mais sem graça. Então tirar sangue hoje pra mim é meio chato e entediante. Tem gente que desmaia e faz o maior fiasco. Eu tenho uma amiga de infância que é assim. Não pode ver agulha. Depois ela passa mal, fica a branca de neve e acaba deitada na maca. Eu quero estar viva para um dia ir com ela tirar sangue. Quero ver a cena. E se ela permitir, registrar.
Certa vez eu estava internada e a enfermeira queria tirar sangue do meu pé porque eu não tinha mais veia no braço. Essa minha amiga tinha ido me visitar. Que sorte a dela, pensei rindo. Então eu disse para a enfermeira:
- Que pé você vai furar? Acho que o esquerdo é melhor. Eu ainda dava dicas. E eu que não reclamo de agulha confesso que tirar sangue do pé é um pouco mais dolorido do que no braço.
Não demorou nem dois segundos, a minha amiga olhou para mim e disse:
- Caro, daqui a pouco eu volto.
E saiu do quarto.
Depois ela voltou e rimos muito. Rimos alto. Da situação. Dela ser assim e eu não. Depois que ela foi embora eu fiquei pensando na vida e como eu tenho a sorte de ter pessoas tão maravilhosas me cercando. Como é bom ter com quem rir, chorar, dividir, caminhar. Eu sou uma pessoa que não gosta de ficar sozinha. Detesto a palavra solidão. Nem que seja a minha cachorra.  Mas gosto de sentir que tem vida ao meu redor. De saber que alguém se importa comigo. Que me ouve, me entende e me compreende. Pode ser a respiração. Mas você sabe que não está sozinho.
Voltando ao dia do exame lembrei de agradecer meus irmãos. Eu precisava agradecer. Eu precisava fazer isso. Mesmo que o exame desse negativo. Não importa, eles estavam ali. E para mim isso já era um ato de amor. Naquele momento em que foram tirar sangue eles já estavam se doando. Mesmo que não percebessem.
Mas eu percebi.
E fomos embora.
Agora era eu e o tempo. Só nós dois. E a espera. A terrível espera.
Entre quinze e vinte dias aproximadamente levaria o exame. Para mim era como dizer seis meses a um ano. Mas não dá para ser antes? Eu não fiz essa pergunta porque eu sou uma pessoa que detesta pedir coisas. De pedir favor. De dar um jeitinho. Mas eu, dessa vez, queria pedir. Implorar. Para amanhã não dá? Eu mesma vou até Curitiba buscar o exame. Amanhã eu estou lá. De manhã.
Mas eu não pedi. Foram dezoito dias. Dias de angústia, ansiedade e sofrimento. Um sofrimento diferente, que não sei descrever. Cada toque de telefone eu pulava do sofá. Mas era a minha mãe, meu pai, meu marido, a mãe de um amiguinho, o rapaz que entrega água.
Esperar um telefonema de alguém que vai te dizer se o seu irmão ou a sua irmã são compatíveis com você, e que, se der positivo eu sairia da hemodiálise e começaria uma nova vida...e se, e se e se.
Eu estava bem doida. Bem confiante, cada vez mais magra e ansiosa.
Nessa época eu estava com quarenta e quatro quilos. Não me lembro de ter tido esse peso um dia. Talvez quando entrei na adolescência. Porque quando eu sai, com certeza estava com uns oitenta. O meu grande pecado é a gula por doces. Eu adoro ir a casamentos. Mas não é para ver a noiva. Nem a missa. O meu olhar é para a mesa dos doces. É a minha televisão de cachorro. A hora de cortar o bolo então, eu estou sempre do lado esperando um pedacinho.
O meu grande mal são os doces com toda certeza. O sal eu me adaptei muito bem. Hoje se como algo mais salgado estranho muito. O sal hoje pra mim é um pitada, aprendi que o sabor pode vir de outros alimentos como alho, cebola e folhas verdes. Não sei se eu teria a mesma facilidade em retirar os doces. Talvez sim, mas prefiro não pensar nisso.
O meu telefone toca. Junho de 2012.  O meu coração dispara. Olhei no identificador. Era a minha mãe. Mas eu não estava esperando a minha mãe ligar. Eu já havia falado com ela nesse dia. O que ela queria? Falar que eu estou magrinha e que eu deveria me alimentar melhor? Perguntar como foi a hemodiálise? Mas hoje eu não tive hemodiálise.
Não era bem a minha mãe que eu estava esperando ligar.
Mas atendi:
-Oi mãe...
- Tudo bem com você? Ela estava bem empolgada e eu já tinha falado com ela.
- Tudo indo. Eu sempre detestei quem falasse isso. Tudo indo. Não existe frase pior que essa.
Mas era o que eu tinha para dizer naquele momento.
- Tenho uma notícia para te dar - ela estava diferente, com uma voz que nunca teve antes. Um jeito de falar diferente. 
O exame. Me veio de repente na cabeça. Mas não pode ser. Como ela iria saber o resultado? Eles iriam ligar para mim. Da outra vez foi assim. Eu recebi o telefonema do hospital de Curitiba e liguei para ela. Eu dei o resultado. Eu era a paciente.
- Mãe...
- Filha, eu já sei o resultado...
Eu fiquei em silêncio por alguns segundos. Não conseguia raciocinar. Minha visão ficou embaralhada. Minhas pernas amoleceram e eu sentei no chão da sala. No tapete ao lado da minha cachorra.
- Mãe...
- Filha, você é uma pessoa realmente abençoada. Iluminada. Você é um anjo. O meu anjo...
- Mãe...
-Pode se preparar para o teu transplante.
- Não acredito, deu positivo? Eu não estava acreditando. Ela estava brincando. Só podia.
- Deu filha.
- Quem vai ser o doador?
- Os dois deram positivo. Os dois. Seus dois irmãos são compatíveis.
- Não pode ser - pensei.
- Mas o seu irmão é mais. Compatibilidade perfeita. Como se fosse seu irmão gêmeo.
E ficamos conversando. Por vários e vários minutos. Sem pressa. Sem rumo. Quem iria se preocupar em pagar aquela ligação? Nenhum dinheiro nesse mundo pagaria aquela ligação.
Choramos muito, mas no final, voltamos a sorrir.
A espera havia acabado.
O tempo agora era outro. 
E estava do nosso lado.












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