Na vida a gente perde muitas coisas. Pai, mãe, cachorro.
Perde brinco no mar. Perde as vezes o juízo. E a razão.
Mas a perda que estava por vir não era nada parecida com
esse tipo de perda. Era diferente. Diferente de todas que eu já havia sentido. Era
uma perda irreparável. Dolorosa. Sofrida.
Uma perda inconsolável.
Voltei ao médico com os exames em mãos e coisa que nunca
faço, mordi minha mão. Com muita força. Quase arranquei meu dedo. Eu já tinha
visto o exame. E eu sabia o que iria escutar. E era o que eu não queria
escutar.
Mas eu estava ali sentada na frente do médico. Eu e ele. E
os meus exames. Meus péssimos exames.
Creatinina nas alturas do Monte Everest.
Não deu tempo de nada, de correr, de me jogar na frente de
um caminhão, de rezar, de gritar, apenas de morder a mão. Não deu tempo de
nada. E antes que uma lágrima caísse, ele olhou para mim e disse:
- Você começa hemodiálise semana que vem. É uma derrota para eu ter que te falar isso,
mas você perdeu esse rim transplantado, Carol. Não podemos mais esperar.
Eu perdi o rim da minha mãe. Aquele rim que ela doou com a
maior amor desse mundo, sem nunca me cobrar nada em troca. Ela tirou um órgão
de dentro de si e deu de presente para mim. Deu de presente para a sua filha,
de coração, pensando curá-la,
protegê-la. Protegê-la de todos os maus. Era um rim tão perfeito, feito para
mim. Um rim rosado, como disse meu cirurgião. Forte e cheio de vida. E esse rim
agora estava dentro de mim sem vida. Sem funcionar.
E não havia o que fazer.
Como eu iria dar essa notícia para a minha mãe, para o meu
marido, para o meu pai? Como seria minha vida na hemodiálise? Como seria a minha
vida?
A minha cabeça começou a fundir.
E eu me desesperei.
Comecei a chorar alto no consultório, compulsivamente,
descontroladamente. Eu queria gritar, fugir daquele lugar.
E eu não queria encontrar a minha mãe.
Chamaram a psicóloga e
uma enfermeira para me acalmar. Mas nada me acalmava. Nada me desviava
da frase "você perdeu o rim da sua mãe". Nada. Eu não pensava em
outra coisa. Eu não emitia uma palavra. Só choro. O choro mais dolorido que
senti em toda a minha vida. Eu sangrava por dentro. Eu queria ficar anos sem
ver a minha mãe. Eu não queria olhar para ela. Ela doou o rim para me libertar,
me fazer viver feliz. Me senti como se tivesse perdido um filho dentro da
barriga.
O que eu iria dizer
para a minha mãe? E as gargalhadas dela? Aquela alegria contagiante, aquele
jeito doce de ser.
Eu não queria que esse dia chegasse.
Mas chegou. E foi no mesmo dia.
Ela já sabia. Porque eu não saberia contar. Eu não teria
essa sabedoria. Eu não saberia que palavras usar. Eu não conseguiria olhar
dentro dos olhos dela. De maneira alguma.
Ela entrou na minha casa e disse:
- Filha...
E nos abraçamos. E choramos juntas.
O choro mais dolorido das nossas vidas.
Não havia o que ser dito naquele momento.
Era uma perda.
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