quinta-feira, 23 de julho de 2015

A Conquista

No terceiro ano de Psicologia eu engravidei, e a doença apareceu logo que meu filho nasceu. Não consegui terminar a faculdade. Não tinha forças para isso. Nem motivação. Os estudos tinham ficado para trás naquele momento. Eu vivia para cuidar do meu filho pequeno, do meu marido, da casa e da minha doença. A minha ficha tinha demorado um pouco para cair. As adaptações, as mudanças. A tristeza, muitas vezes inevitável.
Passaram-se quase quatro anos, a doença estava controlada e em novembro de 2007 eu decidi que queria voltar a estudar. Acordei pensando nisso. Precisa daquilo. Estava com saudades das aulas. Das amizades. Da hora do lanche. Das risadas. Da leitura e principalmente da escrita.
Decidi então que queria me tornar professora. Não pensei em voltar para a Psicologia. Não sei explicar o porquê. Mas eu queria fazer Pedagogia. Era isso o que eu queria.
Me inscrevi e passei na prova. Comprei os cadernos, lápis, uma mochila.
Em fevereiro de 2008 iniciaram-se as aulas.
E fui. Com a cara e a coragem. Deixava meu filho no jardim de manhã cedo e ia para o meu mais novo desafio.
E confesso que fui uma das melhores coisas que fiz na vida. Meus professores, as aulas maravilhosas de Língua Materna e Educação Especial. Fiz amigas maravilhosas, conheci pessoas incríveis. Autores fantásticos. Li livros que me fizeram enxergar a vida de uma outra maneira. Os estágios também. Conheci um outro mundo. Um mundo diferente do meu. Em algumas escolas, as crianças iam de chinelo no inverno e as dez horas da manhã comiam macarrão com carne, porque entre muitas, seria a última refeição do dia. Eu me pegava olhando aquelas crianças e sabia que não estava alí por acaso. Alguma coisa muito forte me fez escolher aquele curso, fazer aquela prova e passar por aquelas situações. Tudo tão diferente da minha vida, da minha rotina. Em muitas vezes me peguei chorando num canto. Principalmente quando ouvia suas histórias, os desenhos tristes que elas faziam.  Mas criança é um ser enviado, especial.  Elas me ensinaram muitas coisas. Dentre elas, aproveitar e curtir as coisas simples da vida. Elas choram e logo depois, como se fosse uma mágica, estão rindo e brincando. Voltei a pular corda, ouvir histórias sem piscar, brincar na areia do parque. Voltei a fazer castelinhos. Voltei a focar em outras aventuras, em outras histórias, e me distanciar um pouco da minha rotina de hospitais, exames e incertezas.
Eu realmente não estava vivendo aquilo por acaso.
Foram quatro anos de faculdade. Muitos trabalhos, dedicação, leituras, dias difíceis, às vezes muito difíceis. Risadas. Se querem saber, como me diverti. Tive a sorte de estar rodeada de pessoas queridas, batalhadoras e muito esforçadas.
Um ano depois eu transplantei. Fiquei três meses sem poder ir para a sala de aula. A imunidade baixa não me permitia fazer isso. Mas meu marido buscava livros na biblioteca e eu fazia os trabalhos  em casa. Minhas amigas e meus professores me ajudaram muito. É  incrível como algumas pessoas têm a capacidade fantástica de se doar. De olhar pelo outro. Eu precisava de ajuda naquele momento. E eles me ajudaram. E nunca me cobraram nada por isso.
Voltei para as aulas em maio e foi um tempo difícil porque continuava com a imunidade baixa. Sentava na janela para ficar perto da ventilação. Não podia abraçar minhas amigas, nem os professores. Mas eles já sabiam, eu entrava na sala e eles me abanavam. Isso acabou virando uma  piada gostosa entre nós. Quando alguém espirrava, eu olhava para trás e elas começavam a rir. "Vamos passar gripe para a Carol". E eu nunca peguei nada. Acho que os vírus delas foram bonzinhos comigo.
Passou-se um tempo e eu só fui melhorando. Recuperei o conteúdo e estava feliz e empolgada com essa minha nova vida. Estava feliz. O rim da minha mãe estava a todo vapor. Funcionando. Filtrando. 
Minha vida tinha voltado ao normal. Mesmo com todos os cuidados que um transplante requer, eu estava ótima.
E em setembro demos início ao trabalho de conclusão de curso. Meu tema era "Socialização na Educação Infantil". Adoro esse tema e estava ansiosa para começar a me dedicar ao trabalho.
 
Mas no dia doze de setembro de 2010 eu não dormi bem. Passei a noite acordada, com náuseas, dor de cabeça e um pouco inchada. Voei para o hospital de manhã cedinho. Fui com a roupa do corpo, sozinha. Um mal estar bobo, pensei. Vão me colocar no soro e logo vou embora. Mas o plantonista, sabendo que eu era transplantada ligou para o meu nefrologista e os dois chegaram a conclusão que eu deveria fazer uma bateria de exames perante os meus sintomas e por ter feito um transplante um anos e sete meses atrás.
Os exames vieram. Eu estava na sala de recuperação aguardando. O meu nefrologista entra e me encaminha para uma biópsia do rim transplantado. Meus exames estavam péssimos.
E eu desabei. Desabei como o muro de Berlim.
A biópsia veio com o diagnóstico. Rejeição aguda. Eu havia perdido o rim.
E naquele momento, as minhas esperanças.
Fiquei trinta e um dias internada. Sem poder sair do quarto pois fiz uma medicação chamada Timoglobulina que baixa a minha imunidade de uma maneira que fiquei em uma bolha. Eu não poderia pegar um resfriado porque correria o risco de ter uma infeccção generalizada.
Certo dia, no hospital resolvi pesquisar sobre essa medicação e desisti. Desisti porque a internet é uma ferramenta maravilhosa, mas sempre confiei nos meus médicos. Eles sabiam o que estavam fazendo. E essa medicação era o melhor a ser feito naquele momento. Baixar minha imunidade para que a rejeição fosse controlada. Para que meus anticorpos se acalmassem um pouco. Em termos simples, era isso que estavam fazendo.
Confiar no seu médico é parte fundamental no tratamento de qualquer doença. Eu nunca duvidei deles. E o que eles me pediam, eu fazia. Eu obedecia.
No dia 14 de outubro de 2010 eu voltei para casa. Desci o elevador do hospital com a minha mãe. De máscara e cheia de presentes.
Quando saí na rua, me deu uma sensação tão maravilhosa que não sei descrever.
- O sol- falei.
- O que filha?
- O sol mãe... que lindo!
Naquele momento minha mãe percebeu do que se tratava. E me abraçou emocionada.
- Você agora, vai poder ver o sol todos os dias.  
Chegando em casa, comecei a olhar as coisas, sentir os cheiros, abraçar meu filho e meu marido. Essa é talvez a parte mais difícil de uma internação, seja ela longa ou curta. Ficar longe da família. Até porque eu sou extremamente caseira. Gosto mesmo é da minha casa. Do meu canto. Então estar de volta ao meu lar, foi para mim, a parte mais emocionante.
E novamente as coisas foram voltando ao normal. Minha vida estava a ser o que era. Eu podia regar as plantas. Cuidar do meu filho e do meu marido.  Mas a medicação que havia feito abaixa muito a imunidade e durante  alguns meses não poderia sair de casa.
O trabalho de conclusão. Eu tinha o meu trabalho para entregar. Em dezembro. Com data e hora marcada.  Pensei em trancar a faculdade e deixar a vida me levar.
Mas resolvi fazer algo diferente, liguei para minha coordenadora, e pedi que me ajudasse. Eu queria fazer o trabalho, queria terminar o curso. Queria me formar. Queria o diploma de professora.
E ela me ajudou. Como uma mãe. Não foi um período fácil. Precisei muito de ajuda. Mas consegui. Meu marido buscava livros e livros para mim na biblioteca e minhas amigas também me ajudaram.
E fui escrevendo em casa. E aquilo de certa maneira foi ótimo porque me tirou um pouco do foco daquilo que estava vivendo. Dos efeitos daquela medicação.
O trabalho ficou pronto. Com muita coragem me apresentei para a banca.
E logo veio o resultado. Passei. E a única certeza que tinha é que meu diploma estava próximo.
Saímos para comemorar na noite da apresentação. Motivos não faltavam.
Minha formatura foi em abril de 2011. Aquela correria, a gente se preparando, convites, cabelo, vestido. Eu estava muito feliz. Meus exames estavam ruins. Mas a rejeição estava controlada e eu estava bem fisicamente. Mas sempre fazendo exames. Nunca deixei de me cuidar.
Chegou o dia da colação de grau. Me arrumei toda. Estava nervosa. Era uma conquista importante para mim.
Passados os discursos, a oração, todo o protocolo, de repente escuto um zumzumzum entre minhas amigas, duas delas. A Reitora da faculdade começou a falar que gostaria de homenagear uma pessoa em especial. Pela luta, pela dedicação.
E falou meu nome.
- Carolina, em nome de todos aqui te parabenizo, você é uma mulher forte, guerreira. Se formou com louvor. Com mérito. Com esforço e dedicação. Parabéns. E falou mais uma imensidão de palavras lindas, mas que sinceramente, não consegui gravar.
Só me lembro de abaixar a cabeça e chorar. Um choro  misturado com alegria, superação.
Algumas coisas passaram na minha mente. Algumas lembranças.
Mas não dava muito tempo, porque já estava na hora de jogar o capelo para o alto e gritar.
E comemorar minha nova e gigantesca conquista.


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