terça-feira, 27 de outubro de 2015

O pão e a luz

Têm coisas na vida que a gente não esquece. Uma delas é andar de bicicleta, outra é o primeiro beijo. O pãozinho do lanche da noite do hospital era uma coisa que eu nunca vou esquecer. O pão do café da manhã geralmente era de forma, as vezes integral, outras branco. Mas o do café da noite que eles serviam de lanchinho antes de dormir, apesar de sono ser coisa rara, era um sucesso.
Eu, além de doces de todos os tipos, eu adoro um carboidrato, não sei ainda como não cheguei aos cem quilos. Tudo que é tipo de massa eu amo. Mas esse pãozinho não dava para descrever. Ele era pequeno, macio, docinho, parecia feito de algodão. Eles serviam as oito da noite. As sete e quarenta e cinco eu já sentava na cama, ajeitava a sonda, meu marido ajeitava a mesinha e ascendíamos a luz do quarto. Tudo pronto para esperar o lanchinho da noite. Dois paezinhos feitos de algodão e um copo de café com leite, outra coisa que eu amo.
Nessa fase eu já estava bem esfomeada, era um bom sinal, mas estava um pouco demais. Além do que, os corticóides abrem o apetite. As vezes me dava vontade de comer os reboco da parede.
E eu estava ali esperando o meu lanchinho.
Cinco para as oito bateram na porta, e como eu estava em isolamento e elas não podiam se aproximar de mim, meu marido pegava a bandeja.
Me ajeitei mais um pouco, do jeito que dava e levei um susto. Um pão e um copo de café.
- João, só tem um pão? Só mandaram um pão.
- Carol, um pão só não está bom?
-Não, é sempre dois. Um não mata a minha fome.
- Você quer que eu chame elas de volta e peça mais um?
- Claro- respondi.
E ele foi até o corredor e não as avistou mais. Voltou para o quarto e me disse que elas não estavam  no corredor entregando lanches. Nisso eu já havia terminado o primeiro pão.
- Eu ainda estou com fome.
- Você quer que eu pergunte na recepção e peça para ver se elas podem voltar aqui?
- Quero- respondi.
As moças já estavam na emergência entregando o lanche por lá. Outro andar.
- Carol, talvez elas não voltem, não sei se vai sobrar pão, o hospital está cheio. Mas vou torcer para que elas voltem, eu tenho certeza que ele pensou isso. Conheço ele. Ele conhece mais do que ninguém a minha teimosia e insistência.
Deu uns vinte minutos e bateram na porta.
- Trouxe paozinho para a princesa esfomeada- disse a copeira que já conhecia minha fama.
- A senhora se importa de deixar dois paes e mais um cafezinho, ela está com muita fome. - disse meu compreensível marido.
-Claro, sobrou alguns hoje, você também quer um?
-Quero- ele respondeu.
E nós ali estávamos fazendo uma ceia completa de Natal, farta. Ganhei três paes aquela noite. E ele dois. Eu estava muito feliz. Feliz com meus três pãezinhos.
Quando terminamos de comer, já estava quase começando a novela Salve Jorge, e eu não perdia um capítulo sequer. Eu sabia tudo, quem estava a fim de quem, quem iria morrer, sabia até o nome do maquiador, do cinegrafista. Eu adorava a Morena e o Théo. Eu esperava a novela como eu esperava o paozinho da noite.
Mas o que mais esperava era o meu marido chegar no hospital. Depois que meu irmão teve alta, ele revezava com a minha mãe as dormidas comigo. Ninguém mais podia se aproximar de mim. Visitas nem pensar. Mas eles me faziam feliz. E me faziam rir. Aqueles dois são capazes de transformar um funeral em um circo em questão de minutos.
Quando era o dia dele, ele chegava perto das sete da noite. Quando chegava as cinco o relógio parece que começava a parar, porque eu ficava olhando para o ele o tempo inteiro porque eu sabia que ele iria chegar. Ele iria abrir a porta e entrar. E eu sabia que seria ele, era o único que não batia na porta.
Todas as vezes que ele chegava, era como se entrasse uma luz junto. Uma alegria, uma energia contagiante que não sei descrever. Ele entrava sempre rindo, fazendo alguma piada, imitando alguém ou me elogiando, mesmo eu estando inchada e cheia de canos espalhados pelo corpo. Mesmo com a camisola com a logo do hospital ele dizia que eu estava linda. Eu sempre estava uma princesa. Eu vivia um conto de fadas, só que a princesa estava transplantada no hospital e o príncipe não tinha cavalo algum, e ia cuidar da princesa doente. Era um conto de fada as avessas. E eu em todos os momentos em que ele entrava no meu quarto, em todos mesmo, eu tinha vontade de rir e chorar, era uma mistura de sentimentos que não se explica.
Todas as vezes que ele entrava no meu quarto, entrava uma luz junto.
Ele realmente é uma pessoa iluminada e eu por ter ele do meu lado.
E todas as vezes que o via eu sabia que tinha feito a escolha certa.

A escolha do amor verdadeiro.

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