quinta-feira, 22 de junho de 2017

O olho vermelho


Em uma manhã nublada tipicamente Joinvilense de ser, tomando café da manhã, meu marido olha para mim e diz:
- Nossa, seu olho está vermelho.
- Sério? respondi não dando muita importância.
Logo depois de tirar a mesa do café fui me olhar no espelho. Pouca coisa, pensei. Uma irritação boba.
No dia seguinte me encontrei com a minha mãe, e ela sempre muito sincera, já me alertou:
- Você está muito magrinha filha, e seu olho está vermelho.
E eu estava mesmo magrinha e com o olho vermelho. Coração de mãe não falha. É incrível.
- Pois é, já percebi, vou comentar amanhã com os médicos na Hemodiálise.
- Faça isso, filha. E não esquece de me ligar depois.
Eu sempre tinha que ligar para ela quando chegava da diálise. Ou depois de uma consulta. Ou quando eu voltava da padaria. A ligação que tenho com a minha mãe é uma coisa além de telefone, é  de outras vidas, uma coisa que não sei explicar. E têm coisas que não se explica mesmo. Apenas  se sente.
Anoiteceu e fui tomar banho. O banho sempre me relaxa, as energias negativas que atraio diariamente vão embora pelo ralo. Quando fui me enxugar, liguei a luz do espelho e percebi o quanto estava vermelho.
Dormi preocupada.
Cheguei desmotivada para mais uma sessão de hemodiálise as cinco e meia da madrugada. A neblina estava fina e branquinha.  Agora eu sei porque os pilotos de avião se arrepiam quando sabem que o destino é Joinville. E pior, de manhã.  Subi as escadas e entrei na sala da limpeza, limpeza que salvava a minha vida.  Dormi um pouco, tomei meu café, fiquei sem fazer nada um tempo, pensei um pouco na vida, dormi mais um pouco, mexi no Ipad, minha salvação em todas as sessões, levei mais umas agulhadas e injeções e finalmente entra um médico. Passou de poltrona em poltrona até chegar a mim. Ele sempre perguntava se eu estava bem, e eu de costume respondia que sim, mas nem sempre estava tudo bem. Na maioria das vezes não estava mesmo. E antes que eu perguntasse o que queria, ele falou:
- Seu olho está vermelho Carol.
- Sim Dr. eu queria mesmo falar sobre isso, não é conjuntivite?
- Não parece ser, procure um oftalmologista.
Saí de lá com a pressão bem baixa. Minha pressão nessa fase da diálise baixava muito e eu geralmente acabava tendo que tomar soro para poder ir embora. Mas o soro me inchava e voltava mais pesada para casa.  O que significava menos golinhos de água nas próximas horas. Era um ciclo sem fim. E eu não gostava desse ciclo.
Chegando em casa, me deitei. Não estava me sentindo bem. Estava fraca e um pouco tonta. E a minha cadela Kiara sempre do meu lado. Minha cola Tenaz. Minha companheira. Ela ficava esperando eu chegar da diálise e sabia direitinho como eu chegava. Se eu chegava mais alegre ela corria pela casa fazendo festa e pegando brinquedos. Se eu chegava menos animada, o que acontecia na maioria das vezes, ela vinha se deitar do meu lado, sem emitir um som. Apenas para que eu soubesse que ela estava ali. E que me amava.
Lembrando do olho vermelho, peguei o telefone e liguei para o Oftalmologista. Fiquei surpresa e consegui um horário para o mesmo dia porque um paciente tinha desmarcado a consulta.
E lá ia eu para mais um consultório. Sentar novamente na frente de um médico. E falar. E ouvir. E levar receitas direto para a farmácia. Essa era a minha rotina. Mentira pura. Tinha dias que eu saía do consultório direto com as receitas e guias médicas para o hospital.
- Olá, quanto tempo Carolina, como está o transplante?
-Nossa Dr., faz tempo mesmo que não venho aqui. O transplante....bem o transplante. Ele acabou.
- Como assim?
- Eu perdi o rim da minha mãe Dr..
E o  silêncio pairou no ar. Dava para ouvir a batida dos nossos corações.
- Não acredito, como isso aconteceu?
E conversamos um pouco, eu quase chorando e ele ouvindo, sem emitir um som. Mas tentei ser breve porque ele tinha vários pacientes para atender e eu não estava ali para falar do rim.
- Que coisa Carolina, você em hemodiálise. E seu olho está vermelho.
- Sim Dr. por isso que vim. Estou incomodada com isso.
- Sente aqui, vou examinar seu olho.
E olhou, me fez ler aquelas letrinhas que parecem grãos de areia, olhou de novo, colocou luz, tirou a luz, olhou de novo.
- Venha, sente aqui, vamos conversar.
- É conjuntivite Dr.? Eu sempre com a minha ansiedade irritante.
-Não, não é. A sua visão está perfeita. Me parece uma irritação. Vou te receitar um colírio e em quinze dias quero te ver de novo.
- E eu usei direitinho o colírio como ele pediu. Os quinze dias. Quinze intermináveis dias. E o meu olho só piorava.
Retornei como ele pediu e ele ficou preocupado:
- Esse colírio que te receitei você suspende porque possui corticóide, vou te dar um clareador. Vamos observar.
Melhoras, ele disse. E eu sei que ele estava sendo sincero. Como sempre.
Aí nessa altura da Champions League você faz o quê? Chora, reza, acredita, pinta o olho de branco, ou todas as anteriores?
- Dia vinte e três de agosto é aniversário do meu sobrinho e afilhado  e nos reunimos em uma pizzaria. A minha família e a do meu cunhado. Todo mundo feliz, comendo pizza e tomando todas. E eu nos golinhos na água. Golinhos não, bicadas. Eu tinha que bicar a água como um passarinho, até porque o dia seguinte não era de diálise. Mas não era fácil, porque quando a gente se reúne, a gente se reúne para comer e beber. E como é bom. Tem coisa melhor do que reunir a família para comer e beber? E eu só podia comer. E nem podia comer de tudo também. Nada com muito potássio. Esse tal do Potássio virou meu inimigo durante nove meses. Era uma briga diária, tudo o que ingeria eu tinha que saber a quantidade exata de potássio. E de sódio. E de tantos outros elementos que nem a tabela periódica dava mais conta.
Neste dia vinte e três, na pizzaria, todas as pessoas falaram do meu olho. Acharam que eu estava mesmo com conjuntivite. E parecia mesmo, confesso. Mas não ardia, nem coçava. Nem doía.
Mas o que doía era o  meu coração por saber que alguma coisa não estava bem, como tantas outras no meu corpo. Alguma coisa não estava funcionando. Porque um olho normal não é vermelho. Brinquei com os meus sobrinhos, porque o meu  amor por eles não cabe no meu coração. Cada um que nascia brotava uma sementinha dentro de mim. E essa semente é o amor que sinto por cada um. De uma maneira diferente.
Voltei para casa. Aquela noite eu chorei. Mas eu tinha que enfrentar mais um dia.  E o café da manhã? E o lanche do meu filho? E a casa? E o cachorro? E a reunião da escola? E eu?  
Eu estava perdida.
Mais um dia de diálise, cheguei bem desanimada e triste. Dormi quase as quatro horas. A diálise acabou. A minha pressão estava bem baixa. Geralmente eu descia de elevador. Um andar. Mas era mais seguro com toda certeza. Mas naquele dia, naquele exato dia eu resolvi me aventurar e desci de escadas. Meio cambaleando, meio tonta e me esbarro no meu ex futuro cirurgião, uma pessoa que tem um terreninho no céu bem garantido. Nasceu para ser médico. Nunca vi nada igual. A linguagem. A sinceridade. A forma de falar. De gesticular. De te olhar olho no olho e te fazer sorrir. Nem que seja por poucos instantes. Fazia tempo que não o via. Mas como nada é por acaso e felizmente justo naquele dia, eu abandonei o elevador e pude dar um abraço apertado nele.
- Como você está Carol?
- Ai Dr., posso pular essa pergunta?
- Nossa seu olho está vermelho.
- Eu sei.
- Carol, você sabe né?
- Sei o quê?
- Isso é do fósforo. São as toxinas.
- Eu fiquei em silêncio e naquele momento tudo fazia sentido. Mesmo fazendo hemodiálise, a máquina não dava conta de retirar todas as toxinas, principalmente o fósforo. E o meu olho estava assim. Fósforo era a palavra. Dei outro abraço nele e me despedi, porque ele estava corrido com muitos pacientes e não tinha o que ser feito.  Eu queria ter ficado conversando com ele até a noite, perguntando o porque de tantas coisas. Porque ele sabe. Ele entende. Ele saberia me responder. Mas infelizmente eu e ele tínhamos que partir.
Naquela noite eu chorei novamente.
Dois meses depois eu transplantei.
- Assim que eu saí da sala de cirurgia, fiquei em observação um tempo. E horas mais tarde fui para o quarto. Eu e meus companheiros.  A máscara, a sonda, a bomba de infusão de morfina, a minha esperança e o meu rim novo.
- No dia seguinte o cirurgião, aquele que encontrei nas escadas e que é meu anjo da guarda, entra no quarto para ver como eu e meu irmão estávamos.
- Tanta coisa para falar, para contar, para ver e ouvir.
- E a primeira coisa que eu escutei dele foi:
- Carol seus olhos...
- O que tem meus olhos Dr.?
- Estão claros.
Ele não imagina o quanto me fez dormir feliz aquela noite.
Era o início de uma nova era.

Mais feliz, menos dolorida e bem mais valiosa.

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